Da década de 1940 até os meados dos anos 60, as histórias em quadrinhos (HQ) sofriam muito preconceito no Brasil, tidas como uma leitura de baixa qualidade. Com o tempo, as HQs foram conquistando espaço e respeito, inclusive em outras mÃdias e áreas, sendo reproduzidas em cinemas e em conteúdos educativos. Hoje, no Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos, uma comemoração: atualmente, elas são a leitura preferida de 45% dos estudantes do Ensino Fundamental e Médio da rede estadual de São Paulo, composta por mais de quatro milhões de crianças e adolescentes.
A partir desse interesse, os quadrinhos podem ser usados para trabalhar diversos temas em sala de aula, além de ajudar a disseminar direitos e debater temas delicados como abuso sexual. "Teve bastante avanço nos últimos anos, agora as pessoas enxergam mais a HQ como ferramenta para ser trabalhada nas escolas. Mas apesar de surtir resultados, ainda é pouco usada no meio acadêmico", afirma o quadrinista Alexandre de Maio, que faz jornalismo em quadrinhos e atualmente está fazendo uma reportagem sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes na Copa do Mundo no Brasil. Além disso, o artista já ministrou oficinas de HQ em bairros da periferia de São Paulo. "Antes as histórias em quadrinhos tinham uma imagem de serem infantil e somente para crianças, hoje percebo mudança, com abordagens mais profundas. Quadrinho é uma técnica a mais, como jornalismo ou fotografia, uma das vantagens é que ele é muito bom para contar histórias".
Este foi o gênero encontrado pelo desenhista MaurÃcio de Sousa para contar histórias com os personagens da Turma da Mônica. O autor aproveita a linguagem e a estética para promover o conhecimento em direitos e deveres para crianças e adolescentes. "Trabalhar com a Turma da Mônica e com os direitos universais da criança é um desafio diário, pois são coisas que estão no imaginário coletivo. A grande alegria de fazer esse trabalho é o respeito e o cuidado que o MaurÃcio e toda equipe têm com o principal motivo de tudo: a criança", conta o quadrinista e atual roteirista na MaurÃcio de Sousa Produções, Lancast Mota.
Em outubro, o autor da Turma da Mônica recebeu a medalha comemorativa dos 70 anos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em homenagem à revista em quadrinhos "Trabalho Infantil - Nem de Brincadeira". No gibi, a Mônica, o Cebolinha, a Magali o Cascão e o resto da turma passam por situações de trabalho e explicam o que é trabalho infantil. "Ver mais de três milhões de crianças em atividade econômica é alarmante. Qualquer pessoa com bom senso deveria estar envolvida na causa, seja pintando, escrevendo, fazendo poesia, desenhando...", atenta MaurÃcio de Sousa.
145 anos atrás
Não é de hoje que a narrativa em tirinhas exerce uma função social. Temas como a Independência, Tiradentes, escravidão e outros momentos da história do Brasil já eram retratados com crÃticas em quadrinhos no final do século XIX. A própria data de hoje homenageia o pioneiro dos quadrinhos em território nacional, Ângelo Agostini. O artista publicou em 30 de janeiro de 1869 "Nhô-Quim, ou Impressões de uma Viagem à Corte", considerada a primeira história em quadrinhos brasileira e uma das mais antigas do mundo.
"Agostini fez muita coisa sobre o papel dos escravos, denunciando questões de falta de dignidade e direitos", explica o desenhista e pesquisador do tema, Gilberto Maringoni. "Seu personagem, Nhô Quim, era um caipira na cidade grande e surtiu certo efeito na época. Antigamente havia muito mais analfabetos, então o Agostini teve esse papel pedagógico, o quadrinho acaba sendo mais convidativo e atraente."
Alexandre de Maio também concorda em relação à linguagem das HQs. "Os editores e jornalistas estão vendo que é possÃvel abordar diversos temas densos e de muito conteúdo com quadrinho. Isso atrai outro público para o seu veÃculo, talvez pessoas que não leriam vão se interessar por estar em outro formato."
Maringoni tem dois livros publicados de quadrinhos e estuda o tema desde os anos 1980. Para ele, as HQs precisam ter uma linguagem e uma qualidade que torne o conteúdo diferenciado e interessante para ser aplicado em sala de aula. Além de recomendar a Turma da Mônica, o pesquisador cita a adaptação do último romance de Lima Barreto, "Clara dos Anjos", ilustrada por Marcelo Lelis, entre outros autores. "É a mesma coisa que produzir um filme a partir do livro, pode ficar horrÃvel. O conteúdo precisa ter qualidade".
Outro clássico brasileiro transformado em quadrinhos é o "Casa-grande & Senzala", do Gilberto Freyre, livro que conta a história de construção da sociedade brasileira. Nas palavras do autor, quando do lançamento da HQ, a obra é "um regalo para os olhos e para a inteligência da criança brasileira. Da criança brasileira, do adolescente e do adulto". A iniciativa teve como objetivo popularizar a obra e a edição original, de 1981, foi feita em preto e branco visando baratear o produto tornando-o mais acessÃvel.
Ambos entrevistados afirmam que as histórias em quadrinhos estão perdendo mercado. Antigamente, eram grandes tiragens e encontradas a preços acessÃveis em bancas de jornal. Hoje o público está restrito e a profissão desvalorizada. "Quanto mais abertura e incentivo tivermos, mais obras serão produzidas com qualidade", afirma de Maio. "Temos algumas gerações que estão à frente de polÃticas públicas e processos educacionais que já enxergam os quadrinhos com outro olhar."
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