'Aprendi que é possÃvel conhecer meninas e meninos, desde bem pequenos, a partir dos e com os seus desenhos'. A constatação é da professora da Universidade de São Paulo (USP), Marcia Gobbi, ao relembrar como se deu sua aproximação com o universo dos desenhos infantis, um de seus principais temas de pesquisa.
O inÃcio desse trajeto remete ao tempo em que ela era professora de educação infantil na cidade de São Paulo, atuação que a aproximou das crianças e de suas criações. No entanto, a percepção apurada sobre os desenhos infantis implicou em um exercÃcio de sociologia de 'estranhar o que é familiar', como explica. 'O fato dos desenhos estarem presentes não significa que os vejamos, que tenhamos olhares mais aguçados e preocupados com eles. Naturalizamos sua presença entre nós e isso é algo perverso, uma vez que, com isso, deixamos de efetivamente olhar para o que comunicam', avalia.
O estranhamento, segundo ela, é condição para que se possa imaginar, problematizar o que constitui o cotidiano e é aparentemente natural. 'Com isso, os traços e linhas infantis ganham importância e se torna possÃvel vaguear pelas retas e curvas, passeando por elas e aprendendo com elas', o que julga fundamental. 'Quando olhamos atentamente para essas produções começamos a compreendê-las em suas práticas e lógicas infantis e perceber que há diferenças a partir dos contextos e condições de criação, sendo possÃvel observar diferenças e marcas de classes sociais, gênero, étnico raciais, entre outras'.
Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a professora fala mais sobre o papel dos desenhos no desenvolvimento integral de crianças e reforça que compreender essas produções diz de um movimento de sair do 'confortável lugar adultocentrado e se relacionar partir de perspectivas horizontais de relações humanas'.
Centro de Referências em Educação Integral: O que os desenhos representam para as crianças?
Marcia Gobbi: Várias são as pesquisas que se ocupam de conhecer os desenhos em distintas abordagens. Eu diria que para sabermos o que os desenhos representam para as crianças é necessário perguntar para elas. Não, não estou sendo indelicada!! Porém, nos esquecemos de perguntar e observar as crianças enquanto desenham. Somos acostumados a recolher os desenhos e considerá-los apenas em seu produto final, deixando o processo de lado. Com isso, a riqueza das escolhas e conquistas das crianças enquanto desenham são pouco vistas ou consideradas em sua plenitude. Ainda assim, é importante que os desenhos sejam vistos e discutidos entre as crianças e por elas, por que não? Desse modo podemos começar a saber o que os desenhos representam para as meninas e meninos. Será que é a mesma coisa? As meninas desenham e valorizam os desenhos do mesmo modo que os meninos? Há condições sociais que ora consideram mais a uns que a outros? Várias pesquisas têm nos mostrado a importância dos desenhos para as crianças como forma de orientar seu pensamento sobre o papel. O desenho pode ser visto como uma pesquisa pessoal das crianças desde pequenas e, como tal, representam conquistas, ensaios em que mundos são imaginados e criados sobre diferentes suportes e não apenas o papel. Sabe-se que são vários os locais sobre os quais desenham e as paredes, chão, areia, terra, azulejos não escapam disso e esses diferentes suportes materializam de maneiras diversas aquilo que cada criança pesquisa, experimenta, inventa e cria.
CR: E o que eles dizem sobre as crianças?
Marcia: O que os desenhos dizem sobre as crianças? Muito. Como já mencionei anteriormente são formas de conhecê-las de modo profundo em suas condições sociais, culturais, históricas. Os desenhos criados pelas crianças em 1930, no Brasil, são iguais à queles elaborados hoje em dia, no mesmo paÃs? Há um processo de transformações históricas, sociais, culturais e econômicas que criam diferentes contextos de criação. As crianças, como atores sociais que são, sujeitos e ativas nesse processo, apresentam suas marcas ao longo da criação e não somente no resultado final. Em meu doutoramento, tomando a liberdade de trazê-lo como exemplo, em que estudei os desenhos das crianças dentro do acervo de desenhos do poeta Mário de Andrade, que está no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, e é composto por mais de dois mil desenhos guardados desde 1926 até 1945, podemos observar essas transformações das quais falei. Quando considerados na relação com os dias atuais podemos ver desde o desaparecimento das margens ? frutos de modelos escolares e suas imposições ? até mesmo temáticas próprias de um perÃodo, bem como, as conhecidas casinhas portuguesas que hoje já não têm tanto peso nos desenhos feitos pelas crianças.
CR: Como situá-los de acordo com o desenvolvimento da criança?
Marcia: Eles mudam de acordo com a cultura, com o perÃodo, com a presença ou ausência de alimentos à imaginação e aos processos de criação. Ao acreditar que os desenhos são produtos de cultura e de cultura infantil não posso deixar de observá-los dentro de contextos diversos: são artefatos de cultura. Ou seja, não sofrem mudanças apenas a partir de fases, mas de condições de produção. São os registros gráficos e visuais que resultam de escutas e que, ao invadir as paredes, podem impregnar espaços, personalizá-los e deixar como herança as marcas históricas de cada um, evidenciam trajetórias de sonhos, desejos, experiências partilhadas com o coletivo infantil, com os adultos ou individualmente. Com isso, não há fases, mas histórias de crianças. Temos que olhar, guardar, considerá-las em sua 'inteireza'.
CR: Como essas reflexões se espelham na prática?
Márcia: Como professora, busco instigar alunos e alunas a olhar os desenhos das crianças e elas próprias enquanto desenham. A última experiência gratificante que tive nesse sentido, e bastante particular, refere-se à uma pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento CientÃfico e Tecnológico (CNPQ) chamada Olhar sobre a cidade: fotografia e desenho na construção de imagens sobre São Paulo a partir de crianças das escolas municipais de educação infantil, em que buscava-se compreender a cidade ou as diferentes cidades existentes em São Paulo a partir das crianças frequentadoras de Escolas Municipais de Educação Infantil paulistanas. Em andanças por distintos bairros, procurou-se esse conhecimento e reconhecimento a partir dos desenhos e de fotografias feitos pelas crianças em metodologia de pesquisa própria aos estudos com crianças. Ainda estou com material riquÃssimo e belÃssimo a ser vasculhado e analisado, colocando à lume os estudos sobre infância e desenhos e suas representações sobre as cidades que, como venho observando, são recriadas pela meninada. A cidade da violência, do namoro, dos grafites, das práticas polÃticas em perÃodo eleitoral, enfim... as tantas cidades de São Paulo, existentes em São Paulo e que ora nos surpreendem, ora reiteram preocupações e espaços e pedaços já conhecidos e apresentados pelas crianças.
CR: E como pensar o incentivo e esse olhar para os desenhos da criança na perspectiva de que se desenvolvam integralmente?
Marcia: Acredito que todas as manifestações expressivas dos seres humanos exercem papel fundamental em seu desenvolvimento. Os desenhos servem para as crianças conhecerem outras e tantas possibilidades de expressão que envolvem o corpo que desenha, o desenho, a fotografia, o teatro, o cinema como dimensões que nos são furtadas vagarosamente e as quais são pensadas como pertinentes a apenas um grupo social. A defesa é que tais linguagens artÃsticas encontrem-se presentes no cotidiano das crianças como direito delas e não como premiação, como recheio entre disciplinas escolares consideradas mais importantes. Considero que as crianças possuem uma forma poética de ver e inventar mundos que permitem transferir da e para a própria vida aquilo que, muitas vezes, é apresentado na literatura, no teatro, no desenho, na dança, nos modos como produz suas esculturas, suas músicas e sons. A arte e suas manifestações artÃsticas e expressivas permitem certa transformação de si mesmo, ao mesmo tempo em que transformam ao Outro e à s culturas em que estão e estamos imersos.
Nesse sentido, quando acreditamos nisso e provocamos espaços que garantam a existência dessas manifestações é possÃvel promover esse chamado desenvolvimento integral que é o desenvolvimento de todos nós e para nós. Temos então, artefatos culturais, linguagens infantis que, de modo indissociável, revelam infâncias e as marcam em nós.
CR: Como avalia a criação desses espaços pelas escolas?
Marcia: Há um grande desafio, digo um para ser generosa, mas temos grandes desafios: vivemos em espaços da padronização que nem sempre reconhecem as manifestações artÃsticas e expressivas como direito de todos: adultos e crianças.
Com isso, prevalece certa tendência de promover algumas linguagens em detrimento de outras, que, vagarosamente vão sendo apagadas em nós e dos espaços escolares.
O espaço pode ser construÃdo e observado coletivamente incluindo crianças e adultos em diferentes segmentos. Criamos cenários em que as crianças vão atuar e nos esquecemos que os mesmos podem e devem ser elaborados pelas crianças. Diria, retomando o que foi afirmado inicialmente que, para isso acontecer, é importante estranhar os espaços familiares em diálogos com outros espaços, ambientes e culturas das e nas escolas de educação infantil e ensino fundamental.
Esses espaços não podem ser apartados; é preciso que possam surgir com estupor das descobertas em distintos ambientes, elaborados não somente para as crianças, mas também com as crianças. Desse modo, os desenhos ganham outra proporção, agigantam-se tomando outros espaços, criando ambientes, fazendo-se presentes de forma permanente e vistos no cotidiano das escolas e comunidades. |