Por Ana LuÃsa Vieira, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
A vida é uma escola e os pequenos aprendizados do dia a dia formam a nossa personalidade. Todos já escutamos essa expressão. E, para o educador espanhol César Muñoz Jiménez, o cotidiano tem, de fato, muito a nos ensinar. Seus trabalhos dedicados ao tema se tornaram referência para professores mundo afora, na Europa e, principalmente, na América Latina.
Defensor da educação integral no sentido mais amplo aquele que lida com todos os ambientes, dos quintais às praças, Muñoz brinca quando é chamado de utópico. ?Adoro ouvir isso, é apaixonante tentar uma educação diferente em um mundo baseado em mentiras?, afirmou, durante uma de suas passagens pelo Brasil.
Consultor internacional em infância, juventude e participação cidadã, Muñoz criou a chamada Pedagogia da Vida Cotidiana, segundo a qual a voz de meninos e meninas deve ser ouvida, consultada e respondida. ?A infância é o maior capital de uma sociedade?, assegura.
Neste contexto, como lidar com as crianças cujos direitos são negados? Como tratar meninos e meninas que foramobrigados a trabalhar e, por isso, deixaram de frequentar a escola, perdendo a chance de brincar e crescer livremente? O trabalho infantil abusivo, degradante, não respeita os direitos da infância?, diz o educador. ?A melhor forma de protegê-los é promovendo a participação plena das crianças na vida social de suas famÃlias, ruas, bairros, cidades e escolas. Confira as reflexões de César Muñoz Jiménez sobre temas ligados ao universo infantil.
O trabalho infantil como sintoma
Ao observar a vida cotidiana, mergulhar nela, essencialmente em seus momentos tidos como latentes, pequenos e triviais por meio da Pedagogia da Vida Cotidiana, sinto e acredito que o trabalho infantil é um dos sintomas do abuso que a maioria dos adultos (por sorte não todos) exerce sobre meninos e meninas em nÃvel mundial, não respeitando seus direitos essenciais.
É preciso averiguar quais são as causas que provocam o trabalho infantil. Devemos pensar que não podemos nos contentar com os sintomas. Dou um exemplo: a febre é um sintoma de uma doença, precisamos saber o que a provoca. Se for simplesmente uma gripe, a febre não causa alardes. Mas se for sintoma de um câncer, é urgente resolvê-la.
Trabalho infantil x Direitos da Infância
Os temas da infância em geral e, em particular, o trabalho infantil relacionado à violação da infância são tratados pela maior parte do mundo adulto por meio de cinco atitudes fundamentais: hipocrisia, falta de credibilidade, temor, resistência e mentira. Vou explicá-las adiante:
Infância é futuro. Nunca será futuro se esse presente lhe traz o trabalho em lugares com tarefas indignas. A palavra infância vem do latim in-falere, aquele que não fala. É mentira que a infância não fala! Ela fala muito e muito bem. O que acontece é que não há plataformas para fazer ouvir sua voz, como as que existem para os adultos (partidos polÃticos, sindicatos?).
A infância alumna, aquela que não tem luz quem tem luz são os professores que educam as crianças, que transmitem a elas o saber.
Infância ainda não.
Ainda não pode, ainda não sabe, ainda não tem capacidade nem idade suficientes De novo, mente-se sobre a infância, fase de direitos, deveres e capacidade para exercê-los.
Infância, idade de transição: isso está certo. A mentira está em que seja apenas a infância a idade da transição. Nós, adultos, também estamos em transição e isso nunca é considerado.
Infância, menor.
Sempre fazendo referência ao parâmetro adultocêntrico, no sentido de que o adulto é, o adulto é quem pode, é o maior A infância está na sala de espera do que é ser adulto. Só se é se se chegar a ser adulto.
Por meio dessa somatória de mentiras, é evidente que a infância está em uma situação plena de desamparo, da qual a maioria dos adultos abusa, não apenas no âmbito do trabalho.
É necessário acreditar
Quando falo de falta de credibilidade ou em falta de confiança, refiro-me aos adultos que não acreditam nas crianças. Meninos e meninas passam a não acreditar nos adultos, nem em outras crianças. Individualmente, algo muito grave acontece: cada criança que não crê em si mesma não saberá que tem direitos, que tem capacidade de denunciar sua injusta e abusiva condição de trabalho. É triste ver os próprios adultos não crerem em si mesmos por consequência, não podem crer nos meninos e nas meninas.
Mais do que proteger...
Em relação à hipocrisia, a atitude majoritária dos adultos na proteção das crianças do mundo, frente a seus problemas, suas incapacidades e seu ?não saber e não poder, simula seu interesse pela infância (essencialmente nos paÃses chamados de ?Primeiro Mundo?), mantendo a criança protegida pelos adultos na famÃlia, na escola e nos espaços públicos.
é preciso promover e participar
Além do 'p' de proteção, há outros muitos mais vitais e potenciadores da qualidade infantil: a promoção e a participação. Uma infância apenas protegida é uma infância alienada, parada, morta. Por essa razão, existem adultos que obrigam as crianças a trabalhar em situações indignas. A melhor forma de proteger a infância é promovendo sua participação plena na vida social de suas famÃlias, ruas, bairros, cidades, escolas.
Reconhecer a capacidade das crianças
Não se pode negar as capacidades que a infância tem para colaborar no desenho dos seus direitos, na hora de desenvolvê-los nos diversos âmbitos da vida cotidiana, onde vive, convive ou mal vive.
No livro La causa de los niños, Françoise Doltó diz: Os adultos têm medo de liberar certas forças, certas energias que os pequenos evidenciam e colocam em questão sua autoridade, suas conquistas, seus privilégios sociais. Eles projetam nas crianças seus desejos contrariados, seu mal-estar e lhes impõem seus modelos. Uma das imposições mais perversas e decadentes é a exploração da infância em trabalhos que violam os mais elementares direitos humanos.
Participar é sentir-se parte de algo, tomar parte de algo. É impossÃvel tomar parte de um trabalho abusivo. Muito menos, sentir-se parte dele.
Confiar nos meninos e nas meninas
Uma sociedade que não combate o trabalho infantil, impedindo que a criança seja criança, perde o seu capital? Sim, evidentemente. Todas as culturas, sociedades, paÃses, cidades, famÃlias e escolas que não creem na infância, que não valorizam sua grande capacidade na hora de exercer seus direitos na vida cotidiana em propor, em criar... É evidente que se perde o maior capital que uma sociedade pode ter.
Não se tem em conta o que não se valoriza, aquilo que não é consciente. Ou se tem a falsa crença de que a infância ?ainda não é, não sabe, não pode. Será e poderá apenas quando já for adulta.
Infância, o maior capital de uma sociedade
Reforço minha afirmação de que a infância é o melhor capital que todas as sociedades possuem. Nem todas elas têm riqueza agrÃcola, industrial, siderúrgica ou petroleira. Mas em todas há meninos e meninas.
Liberdade para criar
Para Manfred Max Neef, no livro La economÃa descalza, se as crianças puderem revelar livremente sua visão da sociedade, da escola, da autoridade, do trabalho e do futuro, os problemas mais fundamentais e urgentes de sua sociedade poderiam se apresentar da maneira mais pura possÃvel.
Convocar, respeitar, escutar
Por isso, eu me pergunto. Será que existe coincidência social de que existe esse capital e que ele é numeroso A média mundial da infância/adolescência/juventude em cada povo é de 35% a 60% da população. Quais as garantias que temos de que a infância é tratada como tal, respeitada, convocada, escutada
Educar em todos os cantos
Creio ser importante criar ou recriar uma educação integral de qualidade, para que, em todos os espaços/tempos pelos quais convivem a infância e os adultos, se evidencie alguns pontos fundamentais. É imprescindÃvel que se incorpore a voz da infância, desde o zero ou quase desde o zero, antes de que se concretizem os desenhos de todas as polÃticas públicas entre elas, à s que se referem ao trabalho infantil. Se a infância não participa deste desenho, perdem-se entre 30% e 50% das ideias de cidadania. Uma sociedade desenhada com a colaboração da infância não permitiria o trabalho infantil.
O mito de que trabalhar na infância e na adolescência enobrece
Creio que um dos primeiros direitos da infância e da adolescência é o de poder educar, realizar atividades educativas nos diferentes ambientes nos quais as crianças vivem e convivem: famÃlias, escolas, ruas, praças, diversas culturas... Tenho muito claramente que a famÃlia e a escola devem ser os essenciais espaços/tempos da infância e da adolescência, compartilhados das experiências educativas das ruas e dos espaços públicos ? não na fábrica, em uma mina, onde esses meninos e meninas são submetidos a situações e explorações fÃsicas, de trabalho, de autêntica exploração e a todos os tipos de abusos.
A leitura do mundo precede a leitura da palavra
Concordo plenamente com a frase acima, de Paulo Freire, sobre a importância que existe em educar, viver, participar e ter uma visão aberta, ampla da realidade global ? sobretudo do contexto local. Há duas visões que devem ir se contrastando periodicamente para que se possa obter uma terceira, mistura da global com a local. Eu a chamaria de glocal.
Um glocal é fruto de se contestar, sobretudo, os elementos da vida que são latentes, pequenos, triviais de nosso cotidiano. A leitura do mundo pode ser feita se olharmos para o mundo profundo, latente, base do mundo patente. Por isso, quando falamos de trabalho infantil, não me centro apenas nele, não parto apenas dele? Tento situar o tema com as palavras trabalho e infantil com o contexto global, social e glocal.
Depois viria a leitura da palavra e sua interpretação, como palavra dentro do contexto de uma frase, um capÃtulo, uma cultura. E, imprescindivelmente, dentro do contexto global: a vida em geral a vida cotidiana, o dia a dia.
Palavras são iguais, sendo diferentes?
É preciso pensar na leitura e na interpretação das palavras. Nos diversos tipos de palavras:
- Palavras ?blá, blá, blá?, que não acrescentam nada, que se deixam ser levadas pelo vento, não têm conteúdo, nada transmitem.
- Palavras que têm conteúdo, clarificam, instruem, dão forma e significado às palavras anteriores ou posteriores, que potencializam a qualidade de um texto?
- Palavras que são coerentes com o sentimento e com a atitude da pessoa que a pronuncia, que a verbaliza, que a transmite.
Trata-se de uma coerência vital, pois, quando um ser humanos escuta outro que fala (essencialmente, se quem escuta é um menino ou uma menina), o que mais capta é o sentimento e atitude que acompanham as palavras ditas.
- Palavras de desejos, sentimentos, propostas de mudança social, de novas visões de vida, de viver, de educar e praticar a polÃtica e a democracia participativa.
- Palavras que se podem tocar. Dizia o poeta paraguaio Gregorio Gomes: A palavra não é um ruÃdo vão. A palavra tem corpo, boca, olhos. Tem coração, alma e coragem. Por isso é que vemos que a palavra, a verdadeira, pode ser tocadas. A palavra não é um som em vão?. Acredito que, além de poder tocar as palavras, elas nos tocam.
Trabalho e aprendizagem
No Brasil, o jovem pode trabalhar a partir dos 14 anos, em condições de aprendizagem. Para que essa transição aconteça de forma saudável, creio que é imprescindÃvel (não apenas conveniente, necessário, positivo, progressista, na moda) que os jovens participem de maneira crÃtica nesta norma que afeta sua vida estudantil e laboral. Participem com o objetivo de que possam, a partir de uma crÃtica construtiva e livre, consolidar os aspectos que sintam e entendam como positivos e realizar propostas à queles que não são bons. Tudo isso junto com a possibilidade de sugerir diálogos, ideias teóricas e práticas de possÃveis mudanças e pontos a serem incorporados.
Maioridade penal no Brasil
Atualmente, no Brasil, discute-se um projeto de lei que prevê a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Afirmo, com máxima contundência e segurança, que seria uma medida ilegal em relação à Convenção Internacional dos Direitos da Infância, de 20 de novembro de 1989, que considera ?criança todo o ser humano menor de 18 anos.
É uma atitude profundamente negativa, por gerar mais violência, ser indicadora de uma decisão adulta irresponsável e sem respeito com os direitos individuais e sociais dos jovens.
Reflexo de uma atitude medrosa frente à juventude. Atitude de medo e impotência, no que se refere ao feito social da violência em geral (e juvenil).
Além disso, trata-se de uma medida altamente indicadora de uma negligência grave: a violência infantojuvenil cria adultos violentos, que, desde seu abuso de poder, sua falta de credibilidade nas capacidades da infância, da adolescência e da juventude em exercer seus direitos, a invasão de espaços que lhes pertencem. Nega-se a resposta adequada e preventiva à violência infantil, adolescente e juvenil: sua participação ativa na vida social, nos diferentes âmbitos onde vivem ou convivem as famÃlias, escolas, ruas, praças, cidades. O Brasil como um todo. |