Por Ana LuÃsa Vieira, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Bruna Marquezine e Felipe Paulino da Silva dividem a mesma profissão, mas passam longe um do outro quando o assunto é a história de vida.
Protagonista de novela desde os seis anos de idade, Bruna está acostumada aos holofotes, flashes e capas de revistas. Grata à famÃlia por sempre apoiá-la, diz não se ver em outra carreira. ?O artista tem sensibilidade, dom de observar e transmitir. A cada personagem, tenho o desafio de contar uma nova história. Tento fazer isso sempre de maneira sensÃvel, que toque as pessoas?, afirma Bruna, ex-estudante das melhores escolas particulares do Rio de Janeiro, hoje com 19 anos.
?Minha famÃlia é muito presente, isso é muito importante, ainda mais nesse meio, onde tudo vem muito fácil e a criança não está preparada. Minha mãe nunca aceitou minha nota na média, sempre foi muito rigorosa com meus estudos. É preciso ter um olhar especial para a infância?, acrescenta.
Felipe, também carioca, morador da favela do Vidigal, conheceu brevemente a fama em 2002, quando tinha oito anos, ao participar do premiado filme Cidade de Deus. ?Sou o menino da cena mais forte do cinema brasileiro, o que chorou de verdade por causa do tiro no pé?, apresenta-se, aos 22 anos. ?Hoje, adulto, não deixaria meu filho fazer uma cena tão forte quanto a que eu fiz. Moro na favela, tenho aquilo em minha volta?, diz.
Voltou ao colégio público quando estava na 7a série, depois de o pai gastar todo o dinheiro de seu cachê cinematográfico. Mesmo assim, não desistiu da carreira. ?Amo estar no teatro. Atuar é uma oportunidade para mim, uma conquista para quem veio de uma famÃlia pobre?, diz Felipe, que já trabalhou como jovem aprendiz e também em um quiosque na praia de Ipanema.
Sentados lado a lado, Felipe e Bruna participaram da mesa de abertura do ?Seminário Trabalho Infantil ArtÃstico: Entre o Sonho e a Realidade?, realizado nos dias 18 e 19 de junho em São Paulo. Lotado, o auditório do Fórum Trabalhista Ruy Barbosa, acostumado a sessões solenes, abriu as portas para jovens atores e mães. Houve debate com a plateia, formada por estudantes e integrantes do Sistema de Garantia de Direitos, sobre os riscos, desafios e cuidados exigidos pelo trabalho infantil artÃstico.
Quais são os limites para os artistas mirins? Isso caracteriza trabalho infantil? O que prevê a Justiça?
Para esclarecer as principais dúvidas levantadas durante o debate, o Promenino conversou com dois incansáveis defensores dos direitos das crianças e dos adolescentes: Rafael Dias Marques, procurador do Trabalho e coordenador nacional da Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (Coordinfância), e Elisiane dos Santos, também procuradora do Trabalho e vice-coordenadora da Coordinfância. Confira:
Promenino: O trabalho infantil artÃstico é um assunto bastante polêmico. Como o senhor vê o debate sobre o assunto?
Rafael Dias Marques: Por ser um tema ligado ao trabalho infantil, envolver o mundo do glamour, da fama e a questão da expressão artÃstica, trata-se de um universo que envolve muitas dúvidas e perplexidades. O assunto traz indagações sobre as suas possibilidades, as suas proibições, quais os limites de se permitir a uma criança trabalhar como artista desde cedo. Todas essas reflexões devem ser abordadas justamente para que os atores do Sistema de Proteção, em especial do Sistema de Justiça, possam melhor refletir, melhor pautar a sua atuação para que essa forma de trabalho não ocorra em prejuÃzo aos demais direitos fundamentais da infância, como previsto no Artigo 227 da Constituição Federal.
Promenino: A mesa de abertura do Seminário reuniu histórias de vida bastante distintas, como as dos atores Bruna Marquezine e Felipe Paulino. O quão importante é mostrar que o trabalho infantil artÃstico não é feito só da fama e que precisa ser protegido?
Rafael Dias Marques: A participação dos atores nos deu noção prática de como a manifestação artÃstica ocorre na forma de trabalho. Trouxe elementos para refletir, itens que devem ser levados em consideração, como a vontade da criança em se manifestar artisticamente e a necessidade de cuidados. Proibir drasticamente o trabalho infantil artÃstico talvez não seja a melhor saÃda, e essa é a posição do Ministério Público do Trabalho. Em um primeiro momento, o trabalho infantil artÃstico deve ser proibido ? todavia, excepcionalmente, e desde que seja protegido e autorizado pelo juiz do Trabalho, é possÃvel que crianças o realizem. Isso é feito com base na Constituição Federal e na Convenção 138 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]. Vimos na fala dos atores que o trabalho infantil artÃstico pode trazer elementos para o desenvolvimento da criança, mas precisa ser encarado com extremo cuidado e na nota da excepcionalidade.
Promenino: Se o trabalho infantil artÃstico não for devidamente acompanhado, quais efeitos psicológicos poderá causar no desenvolvimento da criança?
Rafael Dias Marques: Trabalho infantil artÃstico é uma forma de trabalho. E, como forma de trabalho infantil, traz prejuÃzos para o desenvolvimento biopsicossocial da criança. Traz prejuÃzos na educação, na saúde, na convivência social e familiar... Todos os direitos fundamentais que são ofendidos por uma situação normal de trabalho, também o trabalho infantil artÃstico é suscetÃvel de causar. Muito especialmente, pode vir a causar danos psicológicos para a criança.
Promenino: Quais seriam esses danos?
Rafael Dias Marques: Sabemos nós que a criança e o adolescente são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, que ainda não completaram o desenvolvimento biológico, psÃquico e social ? e, portanto, qualquer pressão psicológica, qualquer contato com a fama, com a celebrização de uma maneira precoce, sem um trabalho de proteção por trás, pode causar inúmeros prejuÃzos à personalidade. Muitas vezes, eles não ocorrem ali, no momento do trabalho, mas vão se refletir na vida adulta por intermédio de frustrações, baixa autoestima, ostracismos, depressões. Isso porque o trabalho infantil artÃstico envolve o sucesso. E o sucesso pode ser repentino. A criança pode ser levada à celebrização em um dia e, no outro, ser esquecida. Em sua mente, que ainda está em desenvolvimento, isso pode representar um sério prejuÃzo para a sua afirmação.
Promenino: Como o senhor vê a recente polêmica relacionada aos meninos e meninas MCs, funkeiros mirins, que cantam letras de forte cunho sexual, como o caso da MC Melody, de apenas oito anos de idade?
Rafael Dias Marques: Sem dúvida, a questão dos MCs representa uma questão vedada pelo ordenamento jurÃdico. Não cai na exceção. A exceção acontece quando há proteção, que a hipótese laboral aconteça sem prejuÃzos aos demais direitos das crianças. Os casos dos MCs demonstram que esses direitos não estão sendo observados. Primeiro, por expor a criança e o adolescente a letras e a ambientes extremamente inadequados para o seu desenvolvimento moral. É preciso uma resposta dura do Sistema JurÃdico para não possibilitar esse tipo de prática laboral.
Promenino: Aos oito anos, a sobrinha de Gisele Bündchen tem a própria marca de joias e de roupas, e atua como modelo da própria grife. Como o senhor avalia a questão?
Rafael Dias Marques: Em princÃpio, eu vejo como uma situação que não se enquadra nas exceções previstas. Primeiro porque, para ser exceção, o desempenho da obra artÃstica tem efetivamente de necessitar da presença da criança ou do adolescente. Ou seja: a obra artÃstica não poderá ser exercida por um maior sob pena de desnaturar o próprio sentido da obra. Estamos falando aqui, neste caso, de uma publicidade, que pode ser feita por um adulto. Não tem o tom da imprescindibilidade. Se não é imprescindÃvel, não é excepcional. Pode ser feita uma denúncia no Ministério Público do Trabalho para investigar e apurar se realmente isso se verifica e tomar as medidas necessárias para adequar a situação aos olhos da lei.
Promenino: Qual é o órgão responsável pela autorização do trabalho infantil artÃstico? É a Justiça do Trabalho ou a Justiça comum?
Rafael Dias Marques: O estado de São Paulo tem se destacado em relação a essa questão, no consenso entre os vários atores do Sistema de Justiça. Tribunal de Justiça, tribunais do Trabalho, Ministério Público do estado e Ministério Público do Trabalho acordaram que a autorização judicial do trabalho, pós-emenda constitucional 45, ampliou a competência da Justiça do Trabalho. É o juiz do Trabalho quem tem a melhor aptidão para avaliar os riscos daquela ocupação no desenvolvimento da criança. Ele é talhado para isso, por ter estudos relacionados à saúde e segurança do trabalho. Assim, pode trazer, dentro da autorização, um viés protetivo para que essa criança e esse adolescente se desenvolvam de maneira correta.
Promenino: Como a Justiça consegue acompanhar, de fato, que a criança esteja protegida no trabalho artÃstico? Por que é recomendado que esteja acompanhada dos pais ou dos responsáveis durante o ofÃcio?
Rafael Dias Marques: Esse é um dos parâmetros de proteção que o alvará judicial deve prever: a presença dos pais na prestação dos serviços, na gravação, nas cenas. Quando os pais não podem acompanhar, designa-se, então, um guardião, um responsável, alguém de confiança próximo ao núcleo familiar.
Promenino: O trabalho infantil artÃstico também é trabalho. Como distinguir essa relação? Por que é importante debater o tema?
Elisiane dos Santos: O debate é de fundamental importância. Trata-se de uma modalidade de trabalho que muitas vezes não é vista como tal, justamente pelo deslumbre que está por trás da atividade artÃstica. Ainda se vê com muita naturalidade as crianças trabalhando na televisão, no teatro, no cinema. Nestes casos, o que se busca é proteger e assegurar proteção integral para a criança que desenvolve esse tipo de atividade em condição profissional.
Promenino: O que deve ser garantido para essas crianças e adolescentes?
Elisiane dos Santos: A atividade profissional artÃstica se diferencia de uma manifestação artÃstica. Não estamos mais falando da arte no campo educacional, pois já exige uma série de responsabilidades por parte da criança e do adolescente que desenvolve esse trabalho: eles terão de cumprir horários. A atividade tem de ser compatibilizada com a escola, não pode trazer qualquer prejuÃzo ao desenvolvimento fÃsico, psicológico ou social das crianças ? tratam-se de direitos fundamentais. É preciso que seus direitos todos sejam uma preocupação. Crianças precisam de convivência social e familiar. Muitas vezes, ficam em uma atividade artÃstica intensa e se afastam da famÃlia, acabam não tendo mais contato com outras crianças, vivem em um mundo de adultos. São questões que precisam ser analisadas. Por isso, para desenvolver qualquer tipo de trabalho artÃstico, é necessário que esse trabalho seja autorizado judicialmente. O juiz do Trabalho vai analisar as condições pertinentes à saúde, à educação, à formação psicológica e moral que devem ser levadas durante o desenvolvimento do trabalho.
Promenino: Se não for protegido, o trabalho pode causar sérios danos. Quais a senhora destacaria?
Elisiane dos Santos: O trabalho pode trazer inúmeros reflexos no desenvolvimento psicológico da criança. O primeiro painel deste Seminário reuniu artistas que comentaram sobre o trabalho artÃstico na infância, sobre as mudanças de realidades, sobre a ilusão. Afinal, a criança ainda está no mundo do imaginário, dos sonhos. Esse tipo de trabalho mexe muito com seu imaginário. Por isso, é imprescindÃvel ter cuidado para que o trabalho não traga reflexos negativos.
Promenino: É possÃvel exemplificar?
Elisiane dos Santos: É preciso ter atenção para que as crianças não façam cenas muito fortes, ou permaneçam em um ambiente totalmente adulto, o que pode importar em uma adultização precoce. Podemos citar como exemplos, também, situações que as coloquem em contato com questões que moralmente não seriam recomendáveis para o seu desenvolvimento, para a sua idade. Tudo isso vai trazer efeitos psicológicos na formação da criança. A criança tem de ser criança, conviver com outros meninos e meninas, ter seus momentos de lazer, de brincar, e não apenas as responsabilidades. Por mais que esse trabalho possa parecer para a criança que é uma brincadeira, aà está o grande problema, porque ela confunde o sonho e a realidade. A criança ainda não tem uma distinção forte entre imaginário e realidade e, caso isso não seja observado e tratado de forma adequada, pode trazer uma série de transtornos psicológicos. |