Por Tânia Carlos, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
São Paulo, maio de 2015. Na noite de uma segunda-feira de céu limpo, mais de uma dezena de jornalistas e militantes dos direitos humanos adentram uma Van, cedida pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Apinhado, o carro parte da Rua Conselheiro Ramalho, atual sede da Rede Jornalistas Livres, localizada no centro da cidade, para o Jardim Monte Azul, no distrito do Campo Limpo, Zona Sul.
O destino é o Espaço Comunidade, centro cultural que, desde 2012, abriga uma série de atividades culturais, sociais e polÃticas ? que passam por aulas da lÃngua africana Iorubá, oficinas de cavaquinho, shows de hip hop, saraus e debates sobre polÃticas públicas e protagonismo juvenil.
Na noite daquele 25 de maio, a reunião abordou a redução da maioridade penal. Todos contra a Proposta de Emenda à Constitução (PEC) 171/93: educadores, artistas, articuladores sociais e jornalistas ali presentes mantêm um pé ? ou os dois ? na militância pelos direitos das crianças e dos adolescentes, em especial os negros e periféricos, que mais sofrem com violências simbólicas e com a repressão policial. De acordo com a campanha Jovem Negro Vivo, da Anistia Internacional, em 2012, 56 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, sendo 30 mil entre 15 e 29 anos ? 77% deles eram negros.
Gabriela Vallim, de 20 anos, jornalista e articuladora social do Plano Juventude Viva, complementa a pesquisa com dados especÃficos de São Paulo: ?só na grande São Paulo, são mortos 83 negros diariamente?.
No debate, ela comentou sobre alguns percalços encontrados pelos militantes na hora de dialogar com as comunidades sobre o tema. Muitas vezes, diz ela, quem defende a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos é alguém que tem um primo, um sobrinho, um parente sob a tutela do sistema socioeducativo e corre o risco de ter esse jovem no sistema carcerário, caso a PEC seja aprovada. ?O próprio negro, às vezes, reproduz o discurso e a postura do branco privilegiado, sob uma perspectiva eurocêntrica. A colonização foi tão eficiente que até hoje ela funciona.?
Também estudante e integrante da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Gabriela começou a produzir suas reportagens a partir das aulas de educomunicação, aos 13 anos. Aos 15, passou a militar no movimento negro. Por meio do programa ?Imprensa Jovem nas Ondas do Rádio?, da Secretaria Municipal de Educação, decidiu prestar jornalismo ? incentivada, também, por um programa da Organização das Nações Unidas (ONU) do qual participou.
Negra, jovem e moradora de Itaquera, Zona Leste de São Paulo, Gabriela relata que o jovem negro, mesmo quando em liberdade, ?é automaticamente criminalizado e marginalizado pelas autoridades?. Ela já sofreu violência simbólica de policiais militares. Certa vez, conta, foi barrada por dois policiais. O carro que o namorado dirigia foi barrado sem motivo aparente. Fizeram com que os dois descessem do automóvel e os revistaram brutalmente. ?Abre as pernas e põe a mão na cabeça!?, foi o que ela ouviu da policial, mas, assustada, não compreendeu muito bem. Com a demora de Gabriela para obedecer, a própria militar abriu as pernas da jovem. Os dois PMs que a abordaram também eram negros. ?Foi uma violência brutal?, desabafa. O casal foi liberado em seguida, pois a suspeita dos policiais não se confirmou.
A juventude pela juventude
Durante o debate no Espaço Comunidade, Gabriela Vallim questionou: ?Onde estão os jovens na luta pelos jovens? Parte da academia está voltada para a juventude. Existem áreas dos ministérios e secretarias estaduais e municipais voltadas para os direitos das crianças e adolescentes. Mas onde estão os jovens enquanto agentes de suas próprias lutas?? Ela afirma que, infelizmente, nos encontros institucionais do poder público sobre a juventude, ainda não se ouve a voz dessa faixa etária.
?Em vez de pensar que a lei [sobre a redução da maioridade penal] passa por vários trâmites e em agosto a emenda pode ser aprovada, temos de pensar que em agosto nossos vizinhos, nossos irmãos, o pessoal da comunidade de 16 anos podem estar na cadeia ? e, estando lá, a chance de recuperação é muito menor?, alerta.
Pesquisas mostram que apenas 30% da população encarcerada se recupera. ?Eu não estou sensibilizada com a causa. Eu sou a causa. Sou estatÃstica?, completa, incisiva.
E as mulheres e meninas, como ficam?
?As pessoas se esquecem de que as meninas, ainda que em minoria [5% dos jovens que estão no sistema socioeducativo são do sexo feminino], também estão correndo o risco do encarceramento. E, para as meninas, é muito pior?. É o que afirma a advogada Eliane Dias, que também participou do debate contra a PEC 171/93 no Espaço Comunidade.
Em uma conversa exclusiva com o Promenino logo após o encontro, por telefone, Eliane afirmou: ?Geralmente, a prisão de garotas e mulheres foi causada por um homem. A mulher raramente está na liderança do crime, algumas delas são funcionárias de seus namorados, companheiros e maridos?. Para ela, é preciso conscientizar essas mulheres para que não sejam vÃtimas também de seus companheiros.
?Eu vi o abandono das meninas dentro das medidas socioeducativas e das encarceradas?, diz a advogada. Quando uma adolescente ou adulta que já tem filhos vai presa, tanto na Fundação Casa quanto na prisão, perde o vÃnculo com sua famÃlia, explica Eliane. ?Geralmente, essa mulher não tem pai, enquanto a mãe vai ficar cuidando dessa criança enquanto a garota está pagando pela infração que cometeu.?
Para a advogada, a mulher pobre e periférica sofre duas vezes com a redução da maioridade penal: enquanto futura presa e também enquanto futura visitante dos presos. Como visitante, está vulnerável às constrangedoras e humilhantes revistas, que não poupam nem crianças.
Um dos vieses da luta de Eliane Dias é a prevenção da gravidez e das Doenças Sexualmente TransmissÃveis (DSTs). ?A adolescência é confusa, essas garotas já estão frágeis por uma série de razões, então é preciso agir ali, envolver a sociedade, os artistas, polÃticos?. Ela acredita ser necessário ?dar um clique, um estalo? para que as adolescentes possam transformar suas vidas.
Atualmente, Eliane escreve o projeto ?Nós por Elas?, que visa zelar pelas mulheres que estão na mira da redução da maioridade penal, tanto as atingidas diretamente quanto as que sofrerão outras consequências, como a exploração sexual durante as visitas aos prisioneiros. ?Muitas vezes o filho, o irmão ou o marido que está preso contraiu dÃvidas na cadeia. A mulher, então, paga a visita Ãntima para um outro preso ou funcionário?, lamenta.
Eliane Dias trabalhou com a deputada estadual Leci Brandão, também militante contra a diminuição da idade penal, no inÃcio de seu atual mandato. Atualmente, toca projetos voltados para meninas e mulheres, ocupação definida por ela como ?minha menina dos olhos?. |