Por Carolina Pezzoni, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Não são raros os casos em que a literatura para crianças é censurada ao seu público por abordar temas considerados inadequados ao universo infantil. Temas esses que, em até maior medida, parecem não se cansar de irromper na vida cotidiana, nas ruas, na televisão. Relatos de violência, medo e dor, difíceis de conter ou de explicar, dos quais muitas vezes elas próprias são as protagonistas.
Diante desse cenário, onde os discursos se revestem de uma violência concreta e vulgarizada, persistem alguns exemplos de livros nos quais a linguagem é um contraponto a essa violência de fato, que corre solta em nossos tempos. Eles expressam dor e medo, mas também afeto e amizade, sempre de uma forma franca, e por isso mesmo acolhedora. É uma literatura que não existe como espaço de moral, para corrigir rumos, como definiu a especialista Marcela Carranza em seu artigo 'O rinoceronte na sala de aula', mas que transita livremente entre zonas de luz e sombra, assegurando o direito das crianças de 'dar sentido à experiência humana'.
'As meninas também participavam de atividades fora da escola. Elas criaram a Assembleia de Direitos das Crianças, em que se reuniam para discutir os problemas do vale do Swat e encaminhar pedidos e ideias de soluções para o governo. Com isso, chamaram a atenção das autoridades para o vale. Em uma das sessões, decidiram acabar com o trabalho infantil; em outra, que todas as crianças deveriam estar na escola. Malala foi eleita sua oradora.' (Trecho do livro-reportagem para crianças 'Malala - A menina que queria ir para a escola', de Adriana Carranca)
Na opinião da escritora colombiana Yolanda Reyes, são histórias que contam 'algo que não é fácil ver em horas de vigília'. Se, ainda para ela, entre outras definições, a literatura consiste em conversas de vida tecidas entre linhas, somente ela própria é uma oportunidade de ampliar as possibilidades de narrativas para essa infância ignorada, a quem ninguém tem a coragem de perguntar o que sente, onde dói.
'Se é bem verdade que as palavras não curam feridas físicas nem podem devolver as páginas da história para inventar finais menos tristes, seus poderes simbólicos nos acolhem em tempos dificeis, para deixar passar a dor e fazê-la suportável', escreveu em seu texto sobre o ofício de escrever para jovens na Colômbia. 'Os livros não mentem nem mudam de tema para nos distrair; não nos mandam brincar quando temos vontade de chorar, nem batem a porta no nosso nariz. Fazem apenas nos co-mover: nos dão a permissão de sentir com os outros, nos emprestam a experiência, a longa experiência da espécie para que possamos viver como outros viveram, como se viraram para viver, como se defrontaram com situações que, no fundo, são tão pouco originais, tão humanas.'
Pensando nisso, em comemoração ao Dia Nacional do Escritor, selecionamos alguns exemplos dessa literatura que permite viver a experiência de outras identidades, a partir da qual podemos voltar à nossa renovados e fortalecidos, como afirmou a professora Marisa Lajolo em sua apresentação ao livro ?Ler e brincar, tecer e cantar?, que reúne seminários da Yolanda. Entrevistamos também a jornalista Adriana Carranca, autora do livro 'Malala - A menina que queria ir para a escola' (Companhia das Letrinhas), sobre a experiência de escrever junto às crianças, para elas, sobre elas.
A inocência das facas
Uma dessas obras que põe luz sobre temas das sombras, para os quais tantos se recusam a olhar, é 'A Inocência das Facas', um livro da editora portuguesa Tcharan, lançado em abril de 2015 (ainda sem edição brasileira), com o apoio da Cruz Vermelha Portuguesa (Delegação Trofa). Com autoria de vários pares de escritores e ilustradores, trata de forma sensível e apurada assuntos que vão do preconceito de gênero, a estupidez da guerra e a violência doméstica aos planos de um menino para a alegria. São histórias de vidas ao revés, que refletem o mundo de crianças ou adultos.
A sensibilidade narrativa e o apuro artístico acompanham todas elas, desde o texto de abertura, de José Saramago com ilustração de David Pintor, passando pelo trabalho conjunto de Filipa Leal e João Vaz de Carvalho, Raquel Patriarca e Cristina Valadas, Marta Bernardes e Marta Madureira, Afonso Cruz (que ilustra o seu próprio texto), até Emílio Remelhe e Gémeo Luís, Álvaro Magalhães e Maria Remédio, Valter Hugo Mãe e Teresa Lima, entre outros.
Segundo resenha publicada no jornal português Público, suas palavras e imagens 'sugerem gestos e comportamentos, vidas interiores, o calor ou o frio dos sentimentos, dos objectos e dos espaços de personagens, de pessoas (e de animais) em que o leitor se (re)vê ou reconhece o mundo que o rodeia', concluindo ser esta uma obra que persegue a construção de um mundo mais civilizado e habitável.
Confira trechos do livro:
'Tenho pensado muito nisto das coisas boas e das coisas más, das coisas brandas e das violentas. Porque todos os dias uso coisas que podem até ser perigosas: como de faca e garfo, faço os meus recortes de cartolina na escola, afio os lápis tão afiadinhos que se os tocar com a ponta do dedo faço de certeza um furinho na pele. E não me magoo, nem magoo ninguém. As coisas não podem ser separadas assim entre boas e más, e a mamã deve saber mais alguma coisa sobre elas que eu não sei para me estar sempre a proibir de mexer nelas.' (Trecho do conto que dá título ao livro, 'A Inocência das Facas', de Marta Bernardes e Marta Madureira)
'Há no meu quarto um canto de chão, entre uma parede e um armário, onde o escuro faz uma cova e o silêncio parece mais fundo. É um lugar que não se vê nem se ouve, mas vive no espaço e dentro de mim, a cobrir-me do mundo. Quando sei que me vão bater o que sinto é quase tudo medo. Um medo feio que me embrulha a barriga e me desassossega as pernas. A certeza de não poder fugir.' ('Canto de Chão', de Raquel Patriarca e Cristina Valadas)
Malala - A menina que queria ir para a escola
Autora de dois livros sobre o Oriente Médio, 'O Irã sob o Chador' e 'O Afeganistão depois do Talibã', e, portanto, já habituada à cobertura em zonas de conflito, a jornalista Adriana Carranca voltou ao vale do Swat, no Paquistão, uma vez mais, onde acabou se envolvendo em uma nova aventura: contar em um livro para crianças a história de Malala Yousafzai, uma menina da etnia pashto, que, em 2012, sofreu uma tentativa de assassinato por defender a educação de meninas na região.
Quando ela recebeu o convite para escrever o livro, a Malala ainda estava em coma, sendo tratada na Inglaterra, e não sabia que se tornaria um símbolo. 'A ideia era não deixar que a história dela morresse', lembra a jornalista. Então, dediciu ficar lá, conversar com as pessoas que viviam a sua volta, a família e as amigas da escola, passou um dia no seu quarto, observando seus objetos, imaginando como vivia. 'Pude ver o que tinha lá, fotografias, roupas, os prêmios que ganhou e estavam numa estantezinha, provas da escola...'
Conforme foi conhecendo melhor a história da Malala e do vale onde havia nascido, Adriana percebeu que havia alguma magia na história desse povo guerreiro, o pashto, que nunca se deixava conquistar. Em tempos mais remotos, haviam passado por lá Alexandre, O Grande, Gengis Khan e Churchill, quando ainda era correspondente de guerra. Inconquistável, nas palavras desses nobres visitantes, o território tornou-se um principado da coroa britânica: com direito a príncipe, princesa, rei e rainha. 'Os contornos da história pareciam um conto de fadas', reparou a autora.
Foi então que decidiu transmitir para outras crianças as suas descobertas. 'Queria que soubessem como a escola é poderosa, o poder de transformação que ela tem ali no vale. Em meio aquele povo tribal, as meninas estudam inglês, leem ?pra caramba?, existem várias Malalas ali... Essa menina que queria ir para a escola, para não ficar à mercê de grupos como o Talibã, por exemplo, e quase morreu por isso.' Confira os principais momentos da entrevista com a autora sobre o processo de criação do livro:
Os desafios de explicar o Talibã para as crianças
'Na verdade, a gente, adulto, é que complica a explicação. Mas a explicação simples, fácil e verdadeira é essa, a de que eles foram crianças que foram impedidas de estudar e só aprenderam a guerra. Tanto é que este livro está sendo muito lido por adultos.'
Como relatar o atentado sofrido por Malala no Paquistão
'A criança de hoje convive muito com essa informação, do tiro, sequestro, bala perdida. Temos muita violência no Brasil e as crianças obviamente ouvem isso, ainda mais com toda a tecnologia disponível e sem as restrições que a família impunha antigamente. Elas estão mais expostas à violência, fisicamente e discursivamente. Só que ninguém está explicando nada disso para elas. Elas ouviram falar do 11 de Setembro, elas ouvem falar de terrorismo, da Malala, e ninguém explicou para elas o que isso tudo quer dizer. Foi o que procurei fazer: contar o que aconteceu com a Malala, quem eram esses homens que eram estudantes mas não puderam ir para a escola [referindo-se ao Talibã], até chegarem às vias de fato.'
Opinião sobre o livro-reportagem para crianças
'Acho que falta mesmo contar para crianças histórias reais, dos nossos tempos. Hoje elas viajam muito, muito mais do que antes, crianças pobres, ricas, refugiadas, todas se movimentam mais. As crianças no Brasil convivem com as diferenças, com expatriados, com imigrantes, com refugiados, e acho importante contar para elas sobre o mundo, ter mais informações, e acho que não tem ninguém fazendo isso. Eu tenho vontade de fazer isso, contar histórias de crianças que encontrei pelo caminho, uma vontade que eu já tinha antes e que acabei concretizando com a Malala.'
A mensagem da aventura de Malala
'É importante, quando se fala de literatura, lembrar que as histórias infantis antigas, de princesas, de heroínas, sempre traziam uma mensagem subliminar: se ela for uma boa menina, vai se casar e ser feliz para sempre. No caso da Malala, ela percebeu logo cedo que não precisava se casar para ser feliz para sempre. Até podia se casar, mas queria ser feliz para sempre por ela própria. Preferia antes ir para a escola. É um conto atualizado, de uma princesa moderna.'
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