Enquanto o Carnaval da Bahia está entre os mais visados do mundo e recebe milhares de turistas todo ano, o estado enfrenta um índice nem tão divulgado assim: aproximadamente 24,5 mil crianças de 5 a 17 anos estão em situação de trabalho infantil, o que o mantém na terceira posição no ranking de denúncias de exploração de crianças no país desde 2011. É neste tema que se concentra a campanha Fique de Olho. Denuncie a exploração sexual e o trabalho infantil, preparada para o Carnaval 2015 pela Secretaria Estadual de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS) da Bahia.
Ao mesmo tempo em que este é um período de intensificação da violência, é também um momento para dar mais atenção a esses fenômenos, como o trabalho infantil, e convocar a sociedade a se incorporar à luta, afirma a assistente social Irani Lessa, assessora técnica desta secretaria e coordenadora do Plantão Integrado, que conta com uma estrutura de atendimento 24 horas envolvendo todos os órgãos atuantes na proteção e na defesa das crianças e dos adolescentes.
O objetivo, segundo ela explica, é traduzir e dar materialidade a uma metodologia de uma atuação em rede, entre os diversos atores do Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Adolescência. Trabalhamos com a perspectiva de garantir a integralidade da proteção, ou seja, não basta apenas identificar a ocorrência, mas é preciso agir para que ela seja interrompida e as medidas protetivas, acionadas, envolvendo todos os atores. Além disso, a campanha tem um caráter educativo, de construção de uma cultura de respeito às diferenças.
A estratégia de mobilização contempla duas frentes: uma é a veiculação de peças publicitárias em pontos importantes nas cidades e outra é a abordagem de público nas portas de entrada de turistas como portos, aeroportos e estações rodoviárias , por equipes volantes, que circularão nestes espaços para identificar situações de violação de direitos e acionar os órgãos responsáveis. Nessa atuação, a campanha conta com o apoio da Secretaria do Turismo, que terá pessoas preparadas para se comunicar com os estrangeiros. Demos um salto com a intensificação dessa parceria, pois a equipe volante está mais preparada para abordar e transmitir a nossa mensagem para todos, reforça Irani.
Ela compartilha também que neste ano o trabalho começou mais cedo, antes do início das festas. Quando o Carnaval de fato começa, as pessoas têm mais pressa, não estão atentas a isso, estão em outro clima. Discutimos como estratégia começar o trabalho de sensibilização antes, na pré-festa, situa Irani. Há, ainda, a questão do argumento, que pretende mostrar que a responsabilidade sobre a segurança das crianças é de todos nós. Em sua avaliação, a partir dos registros do Disque 100, o principal canal de denúncias, o estímulo das campanhas tem sido efetivo: as pessoas estão se envolvendo mais.
Piores formas
Com base na experiência de campanhas anteriores, Irani afirma que a ocorrência de violação mais incidente no período é o trabalho infantil, principalmente na coleta de material reciclável e no comércio ambulante. Por isso, uma equipe foi designada para atuar junto às cooperativas de materiais reciclados e aos trabalhadores do setor a fim de orientá-los, coibir a prática e acolher as crianças. Temos quatro centros de acolhimento, que chamamos de convivência temporaria, onde equipes multidisciplinares recebem as crianças e os adolescentes no período da festa. A ideia é que eles estejam protegidos enquanto seus pais ou responsáveis trabalham, ressalta a coordenadora da campanha.
Como a Bahia é um estado com muitas festas populares, diz Irani, trabalhamos para que a campanha aconteça várias vezes ao ano e que seja intensificada em momentos de grandes mobilizações de pessoas, comenta ela, a respeito da expectativa para esta campanha, mencionando ainda as tradicionais Festas Juninas e Vaquejadas. Para além do Carnaval, que é a nossa maior festa, construimos uma metodologia de ações integradas que pode ser replicada nos municípios, levando em conta as particularidades de cada festa, de cada espaço.
Assunto de criança
Tendo como base o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), a campanha Defenda-se mostra, por meio de uma série de vídeos criados para crianças de 5 a 11 anos, como elas podem se prevenir de situações que facilitam a violência sexual. Enquanto em alguns países da Ásia e da Europa a autoproteção está avançada, aqui ainda existe uma escassez de materiais voltados diretamente ao público infantil, observa o seu coordenador, Vinícius Gallon, pela Rede Marista de Solidariedade.
Lançado para o período de Carnaval e de férias escolares, o 7º vídeo da série, que conta com o apoio da União Marista do Brasil (UMBRASIL), do Ministério do Turismo e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, destaca os cuidados a serem tomados mantendo a linguagem franca e amigável usada nas outras versões, comunicando, por exemplo, que se alguma coisa estranha acontecer, a criança deve avisar algum adulto de confiança. Segundo Gallon, esta é uma forma de assegurar a possibilidade de autoproteção sem tratar da violência sofrida, mas de como evitá-la. Geramos um conforto na criança e no adolescente para relatar seus problemas para alguém de confiança. É algo para a vida toda.
No processo de produção deste material, como relata o coordenador, foi preciso estudar a recepção infantil a esse tipo de conteúdo, e os integrantes da equipe começaram a pensar em cores, traços e abordagens possíveis. No entanto, o que ele acredita ser o maior argumento de sensibilização para este público é a oportunidade de participar de um processo tradicionalmente controlado por adultos. Estabelecer com a criança um diálogo franco e direto, incluindo-a em um processo que é feito por adultos, isso é relevante, reflete, ressaltando, porém, que ela não deve ser responsabilizada pela própria proteção.
Sem transferir responsabilidades
A publicação do conteúdo da campanha Defenda-se chegou a enfrentar resistência, sob o argumento de que a autoproteção seria uma forma de transferir a responsabilidade do problema para a criança. Mas uma consulta a especialistas na área da infância apresentou outra perspectiva: a de que estabelecer esse diálogo, retratando a situação de forma educativa, sem expor a criança em uma situação de vulnerabilidade, é antes uma inovação. Além disso, segundo enumera Gallon, atende aos planos nacionais de enfrentamento à violência contra a criança e ao protocolo facultativo da ONU, do qual o Brasil não é signatário, mas que considera fundamental a mensagem dirigida à criança para assegurar a sua autoproteção.
Não temos a pretensão de achar que a criança terá total controle da situação. Ela sempre vai precisar do apoio de um adulto. O que propomos são formas de agir em uma situação de risco e orientá-la para que converse, denuncie, não tenha vergonha..., diz Gallon, ao se lembrar de que o cuidado integral de meninos e meninas são um papel compartilhado pela família, governo e sociedade. Ele destaca também que, embora sejam feitos para estabelecer uma comunicação direta com as crianças, os vídeos não prescindem de mediação, seja de um educador, profissionais do Sistema de Garantia de Direitos ou de familiares. Esse é um debate ainda muito inicial no país, falta uma cultura de falar sobre sexualidade nas escolas, aponta.
O vídeo especial de Carnaval será divulgado na TV Escola, plataforma do Ministério da Educação, disponível para toda a rede pública de educação do Brasil, e fará parte da programação socioeducativa de 18 unidades de Acolhimento Institucional e nove Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) de Curitiba. Além disso, será veiculado no canal do Grupo Marista no Youtube junto com os outros seis vídeos da campanha. O nosso plano é compilar esse material até o fim do ano, incluindo guias de autoproteção, como a Campanha Ana, que dá algumas diretrizes sobre como agir, e distribuir para outras organizações, conclui Gallon.
|